A coragem pra ficar
ARROZ E FEIJÃO
Ela pensava que jamais teria coragem para ir embora, até o dia em que lhe faltou coragem para ficar.
Foi entre uma garfada e outra, quando tentava calcular, durante o almoço, com quanto de arroz e feijão ela teria que preencher o garfo para que eles acabassem ao mesmo tempo em que a carne que estava no seu prato. Naquele mesmo dia ela já tinha se empenhado, durante o banho, em gastar a mesma quantidade de xampu e de condicionador, para que ambos acabassem ao mesmo tempo. A vida dela era assim, toda empenhada em fazer com que as coisas que conviviam juntas, acabassem juntas também. Achava lindas aquelas histórias de casais de idosos que morriam com algumas poucas horas de diferença. Perder um pé de meia, mas não o outro, ou apenas um brinco, mas não o outro, eram coisas que lhe estragavam o dia.
Ela nunca tinha conseguido acreditar em amor eterno. Era ávida leitora de Bauman, achava que as relações atuais são mesmo líquidas e gostava da ideia de pensar em não ficar a vida inteira com a mesma pessoa. Saber que teria vários e vários amores ao longo de sua vida a fazia sentir livre.
O seu pecado era desejar que o “para sempre” dos “eu te amo’s” pudessem acabar ao mesmo tempo.
Por isso fingiu não perceber quando, no elevador, ao olhar para ele, sentiu que ele era um completo estranho. “Acho que a minha pressão está baixa”, chamou assim aquela esquisitice. Por isso quando ele enviou um whatsapp no meio do dia dizendo que a amava, e ela sentiu que a mensagem era para outra pessoa, nomeou esse estranhamento como "ai, que vontade de comer um doce". E assim, pensava sem pensar, que o melhor era esperar o amor eterno dele acabar, para que ela fingisse que o dela tinha acabado junto com o dele, tal como forjava que seus orgasmos aconteciam junto com os dele.
Foi entre uma garfada e outra que viu que tinha colocado em seu prato mais arroz e feijão do que o necessário para que acabassem junto com a carne, que decidiu parar de ficar se esforçando para que as coisas que terminam separadas terminassem juntas. Foi no exato instante em que decidiu que dessa vez não cortaria a carne em pedaços minúsculos só para que elas acabassem junto com o arroz e feijão, no momento em que terminou de comer a carne e decidiu não comer o arroz e feijão que tinham sobrado, que pularam da sua boca as palavras “estou”, “indo” e “embora”.