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Em um relacionamento sério com o corretor ortográfico


CARTA ABERTA AO MEU CORRETOR ORTOGRÁFICO

Querido corretor ortográfico, nossa situação está ridícula. Mais parece o meu relacionamento com ex-namorados, ex-noivos, ex-maridos, ex-crushes ou ex-seiláoque. Quando você chegou na minha vida, eu não sabia a bagunça que você faria nela. Primeiramente porque eu não te chamei, não te baixei, não pedi que você chegasse, não concordei com termo algum – quando vi você já estava instalado, vivo, presente e atuante em meu cotidiano – como se tivesse estado desde sempre aqui. É verdade que logo que você apareceu, eu não reclamei. Achei bem bom. Acho, até mesmo, que me apaixonei por você, que eu queria que você ficasse na minha vida. Com você as coisas pareciam andar de forma mais simples e era deliciosamente surreal a sensação de que você sabia o que eu queria dizer antes mesmo que eu dissesse. Eu pensava numa parte da palavra e você simplesmente completava com outra, eu deslizava meus dedos por algumas letras deixando várias outras faltarem, e você completava lindamente meus dizeres. E era assim com quem quer que eu falasse pela escrita, você nunca me deixava só. Parecia que era a minha alma gêmea, a tampa da minha panela! Mas depois a coisa foi perdendo o controle. Ao invés de você me ajudar, começou a se meter na minha vida, a emaranhar os meus pensamentos e até mesmo a levar com que eu questionasse se os erros nas coisas que eu escrevia eram coisas que eu queria ter escrito mas pensava que não devia, ou se era apenas você se enfiando nas minhas conversas. Começou discretamente. Eu queria escrever “pai” e você mudava pra “pau”. Eu queria escrever “alegria” e quando via estava escrito “alergia”. Eu queria escrever “verde” e de repente estava “ver-te”. Pequenos erros, ok. Mas depois a coisa foi se agravando. Eu queria escrever “desculpas” e saía “amo você”, eu queria escrever “vai se ferrar” e saía “vem aqui”, eu queria escrever “nunca mais" e saía "para sempre". Fui, então, pesquisar para ver se havia algum vírus se instalando nos corretores por aí. Que nada. Então, digitei no Google (pelo teclado do computador, pois estava impossível com você se enfiando na minha conversa pelo celular) “o que significa quando quero dizer uma coisa e sai outra” - eis que o Google me veio com uma tal definição de “ato falho”. Em busca de fazer Freud me explicar, procurei um analista. Comecei a falar desse relacionamento abusivo que eu estava vivendo com você, onde você já não me deixava mais me expressar do meu próprio jeito, queria que eu escrevesse as coisas como você, que não me deixava em paz para falar virtualmente com ninguém, pois ou você se metia na conversa ou eu precisava encontrar as pessoas pessoalmente para falar sem que você se intrometesse. Eu já estava na fase de ter pesadelos com você – tive três sonhos em que eu abria o computador, escrevia pelo longo teclado do notebook ou até mesmo do desktop, e mesmo assim, de repente, você estava lá. Foi fazendo análise que pude perceber que você não é tão vilão quanto eu pensei, que você não é tão sem-noção quanto imaginei – e que, mesmo se fosse, por que não teria eu o desinstalado, se só me fazia mal? Foi aí que percebi, senhor corretor, que era bem assim que eu agia com todos os meus ex’s. Apontava os erros deles com tanta força que não via nada em mim. Simplesmente achava que eles tinham que mudar, e que se não mudavam, era porque não me amavam. Então, eu ia ficando mais e mais ríspida com eles, até que obviamente eu levava um pé-na-bunda, que confirmava a minha teoria do ele-não-me-ama-por-isso-age-assim. Mas com você a coisa foi diferente, porque se tratava de um m-a-l-d-i-t-o aplicativo. Como poderia eu, demandar amor de um aplicativo? Então, tive que me confrontar comigo mesma. Se você era tão ruim, por que eu ainda te mantinha na minha vida? Ou, ainda, por que eu não relia as mensagens antes de enviá-las, se eu sabia que você alterava o conteúdo delas? Ou, indo ainda mais longe, por que alguns erros que você me fazia cometer, faziam tanto sentido na frase, a ponto de me deixar verdadeiramente encabulada com meus interlocutores e contatinhos? É por isso que venho por meio desta, senhor corretor, te pedir uma segunda chance. Não desiste de mim. Prometo me responsabilizar.

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