Cleo e Daniel
- Roberto Freire
- 29 de jun. de 2018
- 4 min de leitura
"Ele chegou também para junto do banco. E o espaço entre seus lábios diminuía, enquanto pronunciavam os nomes cada vez mais baixo, mas para uma só pessoa.
- Cleo...
- Daniel...
As mãos se encontraram quando não era mais possível falar. Porém ainda houve tempo para que Cleo e Daniel dissessem os nomes, um dentro do outro. Sentaram-se abraçados, as bocas coladas.
Primeiro a subida. Como nos sonhos. A gente salta e permanece longo tempo no ar, quanto quiser. Cleo subia pelos lábios, pelo calor e umidade dos lábios de Daniel. Subia insuflada pelo ar, pelo hálito verde, seiva aérea que chegava à boca e descobria passagens novas e inexploradas para se expandir. E percorria seu corpo por onde jamais passaram os nervos, o sangue, a linfa, a vida. Um despertar de sono eterno, dos átomos, das células, dos órgãos. Mais luz que calor. Sentia a transparência inflamada de uma necessidade antiga e desconhecida. No alto, muito alto, acima de tudo, percebeu que a vida se reorganizava dentro de si, fluindo mansamente de todas as partes iluminadas, para um centro único. E começou a descida. Primeiro dentro. Da boca ao ventre. Quando toda a sua vida, renovada, limpa, concentrada, unitária, deixou morto o resto do corpo e ficou suspensa, imóvel no sexo. Veio a explosão, a desintegração, o caos. A paz vertiginosa.
Daniel sentiu e compreendeu tudo o que acontecia em Cleo. Porque não havia mais Cleo. Nem Daniel. Havia o beijo. O encontro, a ascensão e a queda. Queda que era ascensão, pois não havia mais centro, como não há centro e nem periferia no universo. O curso da energia livre não tem fim. E as novas desintegrações, novas sínteses, no ritmo do infinito sendo antes e depois sem tempo, sendo aqui e agora, sem espaço.
Um beijo de adolescentes num banco de praça.
Três horas da tarde. Bocas coladas, olhos fechados, mãos apertadas. Nenhum movimento na superfície. Nenhum indício aparente de que havia sido violado o segredo da vida dentro daquele beijo.
O primeiro transeunte achou bonito e parou. Olhava o casal, mas via sua própria condição. E chegou no limite de sua solidão e insatisfações. Deixou de sentir e pensou. Parou de pensar e julgou. Julgou com a solidão e as insatisfações. E condenou.
O segundo, o terceiro, o quarto, o quinto não tiveram tempo e nem possibilidade para a surpresa, a emoção e o juízo. O sexto, o sétimo, o oitavo, o nono, o décimo, porque precisavam perguntar para conhecer o que viam, sentiram o que o primeiro julgou e aos outros escandalizou.
Onde dez pessoas param, haverá logo uma centena. Nasce a multidão, exigindo satisfação plena. Como o amor e o ódio das feras em liberdade. As leis do nós não tem conteúdo de consciência, de ética e de valor. Olhares, gestos, gritos, assobios individuais logo tornaram-se corais e danças. Por isso, para compreendermos a massa é preciso estar bem acima dela, numa posição e distância em que não nos possa contaminar e não seja possível distinguir o que faz um de seus componentes. A unidade da massa é a massa. E seu líder, o inconsciente da humanidade, Quem, como pessoa, pode suportar, diante de suas limitações, frustrações e angústias, a imagem da liberdade total, do prazer e que racionaliza o impossível, que mistifica o misterioso e sublinha a da alegria revelados de forma pura e natural?
Quem, como pessoa, impotência, pode tolerar a visão física do eterno, o segredo humano revelado, a energia vital possuída e possuindo?
Não se via nada além da estátua de um beijo.
Estátua de carne, mas estátua. Nenhum movimento. Apenas o tempo do beijo era maior, como o das estátuas. Só isso se via sobre o banco da praça. Cada um que olhava, entretanto, sentia o que não estava olhando. E entrava merda em lugar de sangue, em seu coração. Sentia cada um, ao ver aquilo, o que não houve nunca em mesmo. E a estátua de carne torna-se uma ofensa. Ofensa insuportável que exige revide. Necessidade de revide que é inveja. Muito mais que inveja, é o ódio. E quando se chega ao ódio, descobre-se o amor. O amor inatingível, o alheio amor. Então, olhando o beijo de e Cleo e Daniel, sentindo o que vê - o desconhecido sentimento, o inatingível prazer — cada um é um mendigo em desespero. Cada um é o ódio exigindo destruição.
Na massa, poucos veem, mas todos sentem. E basta alguém gritar. E alguém gritou. Veio a fúria. Todos gritavam. Gritavam para se libertar da dor que os imobilizava, impedia-os de viver. Cleo e Daniel não se davam conta de nada além do que sentiam. Era tudo novo, imenso. Não podiam ouvir gritos e perceber a presença da massa enfurecida a seu redor. Subidas e descidas, sem fim. Sons e cores desconhecidos e mais belos que os existentes. E o calor, mais qualidade que intensidade. Cleodanieldanielcleo: silêncio.
Os mais próximos berravam em seus ouvidos. O que é que diziam? Nada. Berravam, como os bichos. Berravam que era preciso parar, acabar. No céu, desde que os dois se haviam encontrado, apenas o sol desaparecera. Na terra, por ali, o trânsito estava interrompido. Filas imensas de carros, de ônibus e gente que descia e juntava-se à massa. O que havia?
O que era? Os últimos nunca sabem a verdade. Mas gritam como os primeiros. E são ainda mais cruéis. Sirene. Os soldados descem dos caminhões. Enfrentam a massa. Para dispersá-la. Porque o trânsito está parado e o povo ocupa toda a Praça da República, as ruas próximas. Apitos que ensurdecem, bombas que fazem chorar. Muitas bombas e muitos apitos. Os homens choram, mas não se afastam. Distantes, muito distantes do alcance das bombas, Cleo e Daniel choram também e estreitam o abraço. Mas são agarrados. Um grupo segura o corpo de Cleo e outro o de Daniel. Começa a luta. Conseguem, num tranco violento, separá-los. Suspensos sobre as cabeças do povo, são impulsionados por braços e mãos sem direção. Seus gritos não podem ser ouvidos porque um gemido desesperado e contínuo, coletivo e anônimo, encobre tudo. Os dois dizem apenas: Cleo e Daniel. Cleo grita por Daniel. Daniel grita por Cleo. Mas a distância entre eles aumenta sempre. Ela está na rua do Arouche e ele na rua São Luís, suspenso agora por pequeno grupo de pessoas. E caem no asfalto. Não se erguem. Ninguém mais é todos. Acabou. Ônibus e carros superlotam. O trânsito voltou a fluir. Ruas e praças ficam desertas. As luzes se acendem."
(p.111-114)
Roberto Freire - Ame e dê vexame